Para tanto talento deve realmente ser difícil ficar preso a um só instrumento, mas que futuro tem um multi-instrumentista? Imagino quantas vezes o guitarrista Alexandre Assis Brasil fez a si mesmo essa pergunta - tirando a parte nada típica do ser humano modesto e humilde que é.
O resultado é o que se pode encontrar nos dois discos, o de estréia e esse novíssimo Ressaca: um artista que compõem, produz e canta sem perder de vista, e ainda mantendo em primeiro plano, seus licks e trejeitos à guitarra, fiel companheira. Discos de guitarristas são apenas discos de guitarristas. Não os dele.
Nascido em Santana do Livramento, no sudoeste do sul do país, fronteira com o Uruguai, inoculado pelo vírus da música através das gigantescas caixas de som construídas pelo avô marceneiro por hobby. Adestrado em Porto Alegre no regionalmente tão popular rock do grupo Pública por mais de dez anos, Alexandre consegue carregar em sua bagagem uma supreendente latinidade de certeiro apelo indie pop.
Lembro mesmo de ter desafiado e quase provocado o cara quando me contou que neste disco enveredaria por caminhos tão ligados à sua memória afetiva e sua própria etnia, lembrando-o da extrema dificuldade em conjugar isso com o gosto pelas baladas de Neil Young dedilhadas ao violão de aço, que regeram seu trabalho anterior. Mordi a lingua.
Pedi o disco para ouvir antes de aceitar redigir essas linhas. Me incomoda um pouco escrever em meio à minha múltipla atenção (distração?) e afazeres, mas por um bom disco e um excelente artista - nem entro no mérito da amizade - sempre pode ser viável.
Primeira música, Laranjeira, vá lá. Uma boa balada indie, ainda meio atrelada ao Quando Calou-se a Multidão, disco anterior. Na segunda, Casco, uma batida de reggaeton fugida dos clichês do gênero cerca-se de guitarras e um baixão pé-de-boi que assombra a musica latina desde sempre. Adiante, Mancha - um quase reggae - lembra Paul McCartney versionando o bahamense Exuma, pop até não dar mais, levada no cowbell, pandeirola, baixo cantante e um impagável dialogo de guitarras. Na hora lembro de outro guitarrista, o exímio multi-instrumentista David Lindley que acompanhava Jackson Browne e que tinha como referencia para uma eficaz mistura de pop, rock e latinidade.
Em Rastro de Bala, quando uma das primordiais referências estéticas de Alexandre vêm à tona numa guitarra que lembra vagamente David Gilmour (primeiro disco comprado na vida foi um tardio vinil de Dark Side of The Moon de presente para o pai quando ainda era o guri do começo dos 90), me dou conta que uma certa melancolia nostalgica disfarçada de desapego vem emergindo desde lá do início e desnuda-se neste blues psicodélico com levada de bateria tropical do convidado Pupilo (Nação Zumbi) e sax de Ilhan, sueco criado em Istambul, morador de New York absolutamente ligado à musica brasileira deste século através de seu selo Nublu.
Tango e bolero cruzam-se em Geada, acenando para algumas composições do pernambucano Otto, a quem o guitarrista costuma acompanhar em shows, com direito a guitarras dobradas num tempero swingin London. Mais uma vez o Pink Floyd? Até na majestosa milonga Andorinha, com muito da melhor e mais linda canção brasileira. À essa altura não tem como não estar apaixonado e absorto por um apanhado tão precioso de canções que falam diretamente à alma.
O lado produtor do artista preparou bem o terreno para que esse clima fosse indelevelmente incorporado pelas gravações. Por sugestão do colega guitarrista Catatau (Cidadão Instigado) alugou um sítio em Itupeva, cidade próxima a São Paulo, levou equipamento próprio e um time de excepcionais músicos amigos que vão do baixista Guilherme Almeida (Pública, Pitty, La Cumbia Negra) e o baterista Thiago Guerra (La Cumbia Negra) ao tecladista/percussionista/faz-tudo, rocker grande conhecedor de música latina, Paulo Kishimoto (Pitty). Seu conhecimento pode ser conferido em Rotina, onde incorporou uma percussão do candombe, ritmo de origem africana Bantú fortemente arraigado na tradição musical uruguaia pós-escravagismo.
Falando em raiz, a idéia desse disco sedimentou-se para Alexandre Assis Brasil quando o também gaúcho Gabriel Guedes, guitarrista da Pata de Elefante, veio dividir morada com ele em São Paulo e trouxe na mobília um gosto adquirido pela cumbia peruana psicodélica - também conhecida como Chicha. A convivência reavivou a memória do guri fronteiriço e seu apreço original pela forte influencia dos sons que vazam até hoje da america espanhola para o Brasil pelo cone sul. Não por pouco começaram a exercitar esse genero no seu projeto paralelo, já mais de uma vez citado, La Cumbia Negra. Essa influencia torna-se explicita em Vou Me Mudar Pro Uruguai.
Pra fechar o disco, Negra Alvorada reforça e afirma o romantismo e a paixão que dão cor especial ao repertório, soando fortemente como um xote gauchesco de feições universais, tamanha a força da estrutura melódica e beleza harmônica.
Quando voltei para mais uma das prováveis quase trinta audições que fiz dessa lindeza de disco, àquela primeira música, flagrei-me emocionado com a entrega sentimental da letra e sua melodia tão cativante. As guitarras distorcidas e banhadas de intensa euforia me faziam lembrar o que vinha outra vez adiante e compreender que vulto esse outrora exclusivamente guitarrista tomara como um artista quase completo. Fecha-se um círculo e essa obra única que é Ressaca revela seu maior trunfo: não tem cura.
Foto: Gustavo Vargas
Serviço:
Ocidente Acústico - Edição 841
Guri Assis Brasil - Lançamento álbum "Ressaca"
Participações: Wannabe Jalva e Lirinha
Local:
Ocidente – João Telles esq. Osvaldo Aranha
Data: 25 de agosto (quinta)
Horário: 23 horas (a casa abre às 21 horas)
Ingressos: R$ 30,00
Informações: (51) 3012 2675
Realização: Rei Magro Produções
Fone: (51) 9142 - 1589
Enviado por Márcio Ventura
( Rei Magro Produções)